Por Núria Chantre

Fotografia por Nuno Fernandes

Viajante, com raízes familiares pela India e por Portugal, jornalista, formadora e consultora de comunicação, Ana Pracaschandra decidiu, em 2016 fazer uma pausa na sua vida agitada da cidade de Lisboa. Partiu para as ilhas de Cabo Verde, onde viveu experiências que resultaram na trilogia “O Grito da Bananeira”. Uma história de busca, laços, cura pessoal e descobertas que só poderiam ser provocados pela viagem mais importante de todas: o mergulho aprofundado para dentro de si mesma. A autora fala-nos sem reservas do caminho interno percorrido, da síndrome do viajante e da sua luta pessoal contra a ansiedade.

 

-No teu livro, O Grito da Bananeira I: Se Não Se Vai, explicas que esta é uma história sobre pessoas e viagens. O que desencadeou a necessidade de realizar essas viagens?

Em 2015 eu já tinha começado um percurso um bocadinho de nómada, de andar a ter que viajar por alguns projetos profissionais e não estava a passar muito tempo em casa. E, no início de 2016, percebi que começava a sentir-me um polvo. Profissionalmente, emocionalmente muito esgotada. Cheguei a uma fase de esgotamento muito grande. Já não conseguia escutar, nem ver a direção certa. Num dia eu desempenhava três papéis, como jornalista, como formadora, ou a ajudar noutros projetos como consultora de comunicação. Era muita coisa ao mesmo tempo, um desdobramento emocional, e percebi então que tinha que parar. Não estava a conseguir dar resposta. Parar, ir para um sítio com mar, calor, fora da Europa. E as três hipóteses que surgiram foram India, pelas razões óbvias de eu aí ter raízes familiares, Tailândia ou Cabo Verde.

 

India, eu tirei logo da equação, porque não estava preparada. Sentia-me tão desequilibrada naquele momento. Tailândia também é muito longe. Cabo Verde é perfeito. É a quatro horas daqui. É a distância que neste momento eu me sinto preparada para percorrer. E também porque decidi ir também para um sítio onde não conhecesse ninguém. Isso também era uma premissa. Onde eu não conhecesse ninguém, onde eu pudesse estar sozinha, achava eu.

 

-E como é que começou este teu relacionamento com Cabo Verde?

Olha, começou muito através da gastronomia e da música porque eu ia ver os concertos. Ia ao B.Leza, ia muito ao Estrela Morena, que é um restaurante cabo-verdiano ali no Príncipe Real. Fui ao Porto, à Tambla, que é outro restaurante cabo-verdiano maravilhoso. Então fui estabelecendo laços com essas pessoas que me falavam de Cabo Verde, viajava através do que me diziam e sentia uma conexão. No Estrela Morena, o restaurante onde eu ia quase todas as semanas, o Vitório de São Vicente, que veio menino para cá (portanto ele há 40 anos que não vai à terra dele), dizia-me sempre: “Não menina, tu tens que ir a São Vicente, é a tua cara, tu vais-te identificar muito”. E eu ouvia aquilo e aquela premissa foi germinando no coração. Então começou assim o relacionamento, mas muito intuitivo e pouco consciente. Foi uma escolha, na altura, intuitiva.

 

-Em que momento ficou definido que era preciso embarcar não só numa viagem interna, mas também geográfica?

Olha, foiruma mescla de condicionantes. Nesse ano faleceu a minha avó. Ou seja, que não foi uma perda de que não estivesse à espera porque foi um trabalho interior feito de passagem, também de alegria, de passagem para outra dimensão. Mas foi uma mescla de transições, de perdas. De transformações de relações na minha vida pessoal, para além de toda essa exacerbação profissional que me fez intensificar uma vida espiritual que eu já vinha a ter, que eu já vinha a explorar. Percebi que para mudar certas circunstâncias na minha vida, eu tinha que me mergulhar para dentro. E por isso é que (no livro) eu falei da questão do escutar. Ou seja, para modificar certos padrões e escolhas, para eu não cair sempre na mesma roda vida, como a música do Teófilo Chantre. A roda vida inconsciente da cidade, e Lisboa e as capitais têm esse poder de te anestesiar numa roda vida em que tu perdes já o rumo do que é que estás a fazer. E eu percebi. Para além de eu me mover geograficamente, eu preciso de mergulhar para dentro.

Isso também é falado no livro, é uma temática importante que tem sido discutida nos lançamentos, é a questão da ansiedade. Eu fui diagnosticada em 2015. Fui para o hospital, com uns sintomas assim um bocadinho menos subtis, mas eu não queria aceitar isso. Continuei a minha vida. Não estava a ouvir o corpo. Então isso também motivou essa viagem interna, porque eu não queria, nem quero, nem quis tomar medicação. Quis fazer outro tipo de abordagem nesse caminho de cura.

 

-Isto tudo instalou em ti um sentimento de autoconfiança?

Olha, as pessoas diziam-me assim: Corajosa, foste para outro país sem conhecer ninguém e dele conhecendo tão pouco. E eu digo: Não foi coragem nenhuma. Eu senti que não tinha outra hipótese. Ou seja, ou ia ou rachava. Depois, talvez observando, eu senti-me muito abençoada porque fui atraindo pessoas incríveis em Cabo Verde que me orientaram, que me guiaram, quase me adotaram. Foi maravilhoso. Senti-me abençoada. Daí vem aquela sensação de realização.

 

Como foram mudando os teus sentimentos ao longo da viagem?

A partir do momento na sala de embarque, em que começaram logo estes receios normais de um destino desconhecido, sozinha. Eu comecei a prestar atenção ao que me rodeava e como a sensação começou a ser tão mágica. Cada pessoa com quem eu falava, quando perguntava alguma coisa, parecia que me respondia exatamente o que eu precisava de ouvir, mesmo fazendo coisas muito simples. Eu recordo-me da Teresa na sala de embarque, do taxista que me foi buscar na ilha do Sal. Enfim, as pessoas, com a minha chegada a Cabo Verde, fizeram-me sentir muito segura. Eu fui-me entregando, rendendo a Cabo Verde através das pessoas, da bela morabeza e bela receção que tive. Para além deste carinho e deste colo, eu também tive a oportunidade de estar comigo mesma e de explorar o tal mergulho. Não te posso dizer que tenha sido uma linha reta emocional. Foi assim, muito curvilínea, mas fui sempre tentando ir na direção do apaziguamento e foi isso que foi acontecendo. Nas primeiras duas semanas estive bastante tranquila. Pensei “uau, isto é incrível, estou a conseguir desconectar-me de toda aquela ansiedade”. E depois a vida mostra-me que não depende só do sítio, depende do trabalho que tu fazes, interno.

 

-Que lições foste aprendendo e que continuas a aprender com esta experiência?

Muita sabedoria na simplicidade de viver o dia a dia, em partilha, em comunidade com muita alegria. Mas foi principalmente o estado de presença incrível, como através das histórias e narrativas familiares, e pessoas com quem me cruzei, que me inspiraram a enraizar-me muito no agora, que é precisamente a cura para a minha questão de ansiedade. Então esta foi a lição, de me render, sem soltar as preocupações. Em Cabo Verde eu aprendi que nada é garantido e que mais vale aproveitar o agora, intensamente, inteiramente, do que já estar preocupada com o futuro. E a questão da partilha também foi muito importante. Sentir e observar e fazer parte. Não interessa quem sejas, as pessoas partilham contigo. Casa, comida, tudo. O sorriso, uma dança, e esse viver em comunidade. Eu cheguei à conclusão de que é assim que quero viver. Não quero viver fechada num cubículo isolada, numa cidade.

 

-No livro falas muito dos mestres de esquina e das amizades que foram nascendo durante a tua visita. Em algum momento tiveste a sensação de que, de repente, te tornaste parte de algo maior e de que isso era mais importante para ti?

Sem dúvida. Senti que tinha chegado a casa, finalmente. Porque, na verdade, em Portugal, não sei se gosto de dizer em Portugal, mas na minha vivência destes anos, nascida neste país, sempre me senti deslocada, por várias razões. Não sei se pode justificar-se isto com o país, talvez possa justificar-se com as referências familiares que eu tive, que agradeço porque me fazem evoluir e movimentar. Mas, em Cabo Verde, o que senti foi que naturalmente, sem fazer grande coisa, sem fazer esforço, eu fui abraçada numa comunidade que não me questionava. Ou seja, que não questionava de onde é que eu era, para onde é que eu ia, o que estava a fazer, enfim, simplesmente me abraçou. E isso tornou-se exatamente o mais importante na minha vida. Então, por isso é que eu quis voltar. Se não se vai, não se volta. E foi exatamente a sensação de casa que Cabo Verde me proporcionou que eu nunca havia sentido. E que me fez perceber o que é que era importante para a minha vida.

 

-O livro conta também muito dos conselhos e das orientações que recebias das pessoas. Como fazias para separar as palavras dos teus “mestres de esquina” das tuas próprias intuições? Alguma vez estiveram em conflito?

Muitas vezes em conflito. Mas é no conflito que nós percebemos também onde é que estamos. Nas resistências. Foi sempre em consonância. Mas nem sempre eu estava imediatamente pronta para receber as orientações. Mas a abertura era grande para isso. Foi um misto de mensagens que iam diretamente à minha intuição com o caminho que eu já estava a fazer, com outras que despertam pela resistência. Por exemplo, houve alguém que me disse: tu estás a receber todas as benções, só tens de te abrir para elas. E eu pensei “mas eu já me estou a abrir”. E não. Quer dizer, ainda não estava. E há sempre coisas por trabalhar.

 

-Como fazes para não te esqueceres do que tens aprendido nas viagens, e para manter aquele entusiasmo de seguir em frente e continuar neste estudo aprofundado sobre a tua pessoa?

Esse é o maior desafio, quando voltas para a tua base. A minha base é aqui em Portugal. Apesar de eu ter tentado (isto encontra-se no segundo volume do livro) ir viver para Cabo Verde. O desafio é precisamente (para mim), manter aceso esse entusiasmo. É também curvilínea, e há momentos em que isso tornou numa dependência, a viagem. Não te vou mentir. Esta coisa, a síndrome do viajante. Identifico-me muito com uma sensação de apaziguamento quando estou em transição, mas nunca quando estou parada, e isto também pode tornar-se numa questão. Então agora, pelo menos depois do lançamento em Cabo Verde, concentrei-me nesse momento muito emocionante de concretizar o que eu tinha visualizado durante muito tempo; mas ao mesmo tempo eu estava menos feliz do que esperava. E foi assim: nesse momento é que eu devia estar realizada, e não estava. Eu tive de olhar para dentro, ver que tinha que trabalhar muito, todos os dias, esta sensação de presença. E a sensação de presença, no meu caso, vem por exemplo através do corpo, percebes. Estamos aqui a falar e estou aqui a dar uma caminhada. É isso, muito de coisas práticas, exercícios práticos que podem ajudar nesta sensação de presença e de abertura que é do teu corpo, da tua respiração, de respeitares os teus tempos, impores limites, dizeres não, tudo isso, tem de fazer parte da tua rotina espiritual. E é um exercício todos os dias, desde que acordas. Mas eu tenho a síndrome do viajante. Neste momento não tenho nenhuma viagem prevista, mas apazigua-me saber que tenho um mundo inteiro por conhecer e que há essa possibilidade também, ou que se pode criar a possibilidade.

 

-Porque é que foi importante para ti transmitir as tuas experiências neste livro?

Quando eu regressei de Cabo Verde a primeira vez, em abril de 2016, vim decidida que tinha que voltar. Mas até voltar havia todo um processo de preparação para aquilo. E as histórias que eu tinha encontrado em Cabo Verde não paravam de me latejar na cabeça e no coração. O primeiro projeto que surgiu foi a ideia de fazer um blog. Senti que tinha que partilhar estas lições, estas histórias que eu aprendi com as pessoas, porque são incríveis, não podem ficar só para mim. Mas depois eu pensei, estas histórias entrecruzavam tanto, de ilha para ilha, de família para família, de amigos para amigos, e outros. E andei à procura de uma ideia para um livro durante muito tempo, e não tinha a ideia que me puxasse, e então de repente surgiu, click. Foi na casa da minha avó, perto do mar. Eu dormi sobre o assunto deste blog e no dia seguinte acordei com o título, que seria, Se Não Se Vai, Não Se Volta. Mas depois adicionei O Grito da Bananeira porque vai ser uma trilogia. Foi também uma necessidade de voltar atrás no tempo. De voltar a Cabo Verde. E a única forma que eu tinha naquela altura era escrevendo e ouvindo a música. E então por isso é que a música também é um fator tão importante no livro. Tem banda sonora.

 

-Nota-se no livro que entranhaste na vivência cultural das ilhas, tanto na música como na poesia. Fale-nos um pouco de como sucedeu isso.

Olha, posso dizer que essa curiosidade foi muito intensificada pela cultura que é nata em mim. Mas foi muito intensificado por eu estar in loco e por ter dicas de autores, ou por determinados locais culturais como Divin’Art, que tinha uma biblioteca muito interessante a nível de abordagem da música. Ou de conversar com o senhor Luís na biblioteca do Centro Cultural do Mindelo, ele deu-me lá tantas dicas de compositores cabo-verdianos. Ou de falar com o tio Kiki, que me apresentou todo o mundo da pintura, das artes que ele viveu naquela casa, que oportunidade poder estar com ele. Enfim, tudo foi muito inspirado pelas pessoas e quase entrevistas informais que fazia, por ter podido chegar a esse mundo tão rico no universo.

 

-Os dois volumes que seguem (da trilogia), também retratarão Cabo Verde e Portugal, ou outras paragens, ou será que é surpresa?

O terceiro número será noutro continente.

 

-Mas, e o segundo volume, pode dizer-nos se irá ainda retratar a segunda viagem que fez a Cabo Verde? Ou seja, os leitores saberão mais sobre o desenrolar da cena com a concha?

Sim. (Risos.) Há muitas personagens que ficaram assim, no ar.

 

-Diria então que Cabo Verde faz parte dos seus planos para o futuro?

Claro que sim. Há muitas ilhas que quero visitar. Fogo, Maio, Brava. Conhecer Santiago melhor, sem dúvida. As festas de Sonjon em Santo Antão, a que eu não cheguei a ir. Tem tanta coisa por descobrir ainda. Fazer o curso de mergulho, agora que estou a perder o medo da água, quero dizer, fui perdendo. Devia ter feito o curso de mergulho, aquilo é um sítio maravilhoso para o fazer.

 

O Grito da Bananeira encontra-se disponível na livraria do Centro Cultural do Mindelo e no restaurante Estrela Morena, em Lisboa. Também pode ser obtido no website amazon.co.uk.