Mário Lúcio Sousa está de volta aos discos com Funanight, após cinco anos de interregno em que foi ministro da Cultura. O álbum, que é uma homenagem ao funaná, um dos mais originais géneros musicais de Cabo Verde, traça o percurso do estilo, desde a origem, quando era cantado em coro nos campos, à atualidade, em que inunda as discotecas sob a forma de Kotxi Po. Nesta entrevista à NT, o cantor e compositor, que apresenta o disco na Europa e na América neste verão, fala do seu conceito e da sua interpretação do funaná, mostrando-se entretanto pouco preocupado com o sucesso, ou não, que o disco poderá ter junto do grande público. Afinal, ser inovador implica estar â frente no tempo.

– Por cinco anos (2011-2016) foi ministro da Cultura. Durante esse período não gravou nenhum disco. Tinha saudades de estar em estúdio com os seus pares a ensaiar e a gravar?

– Sim, muita saudade, embora eu, quando aceitei integrar o Governo, tenha feito uma mentalização que cumpri, a saber, não fazer concertos, suspender toda a minha agenda de concertos e suspender também toda a minha agenda como escritor, nomeadamente lançamento de livros, etc. Entretanto, nesse período, ganhei prémios literários e fui participar nas cerimónias de entrega. Ganhei também prémios discográficos e esporadicamente participei nesses eventos. Deixei a vida artística suspensa, isto por uma questão de ética, mas também por eu me conhecer bem. Eu escrevo e componho compulsivamente e quando começo um livro ou um disco, não existe mais nada no mundo.

– Abstrai-se completamente, de tudo?

– Sim, é uma média de 16 horas por dia a escrever e não tenho vontade de fazer mais nada. E quando entro na “onda” de que já comecei a gravar um disco também para tudo. Só o universo gira. No caso deste disco, estive seis meses gravando, viajando … Então, eu sabia que isso poderia tirar-me o foco da missão pública a que eu estava cometido naquele momento. Assim, durante quatro anos não senti saudades, mas quando o mandato estava quase a terminar já contava os dias para voltar ao meu mundo das artes e então começou a bater uma saudade dos amigos, dos estúdios, das tournées, dos camarins, dos palcos, do público, de tudo. Mas felizmente já estou cá.

– Diria que gravou Funanight num tempo recorde ou para si é costume gravar um disco em seis meses?

– Não, acho que é o tempo mais longo que já utilizei para gravar um disco. Mesmo no caso do disco Kriol, que é um disco que eu gravei em Cuba, na Martinica, em Lisboa, Paris, Bamako, Dakar, Rio de Janeiro, Praia, Mindelo, não levei tanto tempo, e eram viagens mais longas, porque havia um filme também a ser feito sobre o álbum. Mas este disco, Funanight, é o mais longo. Estou nisto desde Setembro/Outubro.

– Foi de propósito que tomou este tempo todo?

– Sim. É um disco sobre o funaná e implicava várias coisas, não eram só composições minhas e também não era só sobre a minha forma de compor. Eu tinha o compromisso e a responsabilidade de fazer como os outros fizeram antes de mim, que é compreender o espírito do funaná. Tem uma forma de cantar, uma temática de escrita, uma forma de arranjos, de abordar os instrumentos e tem também uma estética própria. Tudo isso levava a que eu gravasse, regravasse, voltasse a gravar. Às vezes ficava bonito, mas não ficava com o espírito, pois era preciso um compromisso entre a beleza e o espírito da coisa. Por isso é que levou tanto tempo, e também porque quis trabalhar com os melhores, tanto em Cabo Verde como fora, porque o disco dependia muito da alma e da competência de cada um. Resolvi fazer a mistura em Paris, no estúdio A vous *NT1, onde o grupo Simentera gravou o primeiro disco e havia um engenheiro de som muito bom, eu quis fazer a mistura com ele e fizemos. E havia outro engenheiro de som muito jovem, que montou o meu estúdio, e eu queria que ele fizesse algumas misturas; havia outras misturas que eu queria fazer no Rio de Janeiro, com outro engenheiro de som que trabalhou comigo quando gravei com Milton Nascimento e com Gilberto Gil. Há músicas que eu gravei na África do Sul, porque queria que essa sonoridade, essa cadência, essa forma de sentir a música na pele e no ventre trespassasse para disco. Gravei os metais e os sopros todos em Cuba, porque sabia que só os cubanos podia captar essa essência do funaná fora e fazer esse trabalho, para além dos cabo-verdianos, mas eu queria esse toque crioulo de um outro lugar. Esse percurso acabou resultando realmente no que queria. Bem, eu estava sem pressa.

– Falou no espírito do funaná. Qual é o espírito do funaná?

– O funaná é muito sincrético. A gente ouve um funaná ali na esquina, parece repetitivo, um acordeão diatónico, três/quatro acordes e tal. O que acontece é que na forma de cantar o funaná tem muito mistério, o lamento, o glissando, a melopeia está a dizer mais do que a gente escuta. Os gritos libertários estão a dizer mais do que a gente escuta. Quando se dança o funaná, normalmente aos pares, há aquele momento de soltura, de bater o pé no chão. O funaná também tem o seu código, sobretudo nas palavras. É possível fazer um funaná completo e não usar uma frase, mas só excertos de frases, não usar verbos mas substantivos. Por exemplo: “Sodadi de tal lugar”, “Sodadi di fulano”, “Ah, fulano”. Isto tem uma energia e um espírito que era preciso captar e que os grupos dos anos 80 e 90 captaram tão bem, quando deveria ser o toque dos instrumentos eletrónicos a expressar esse espírito. O funaná apresenta três características fundamentais: tem um espirito libertário, no sentido de que quer expressar toda a ânsia de liberdade. Mas o funaná também tem um espírito libertador, provoca, tanto é que foi o primeiro género em que um homem e uma mulher dançaram nariz com nariz, umbigo com umbigo e otras cositas mas. Foi uma libertação e por isso o funaná é também muito libertino, a forma de dançar, aquela evocação à sexualidade permanente, é uma forma de liberdade, de se poder entrar em contacto. Assim, basicamente, estou a falar do seu espírito e da sua compreensão social, é isto então que se leva à música para que esta comunique, seja um veículo, mas primeiro é preciso captar o espírito para saber que tipo de música fazer.

– Disse que os artistas dos anos 80 e 90 souberam muito bem transmitir esse espírito do funaná. E o funaná de hoje, continua fiel ao espírito original do género?

– Atualmente, o funaná está a sofrer um processo, há a renovação dos grupos dos anos 80, como o Bulimundo, o Finaçon, e outros anteriores, como Os Tubarões, e isso vem trazer aquele espírito que estamos a precisar de ouvir e continuar a cultivar. O funaná está sempre presente, mas o funaná tem a força da renovação, como foi o caso de os Rabelados, dos Livity, dos Splash. Mas o funaná ainda tem uma coisa permanente, que é a sua mistura com outros géneros de música: com o reggae, com o rap, com o rock, e neste disco meu há um momento de heavy metal para interpretar uma música que os Finason e Zeca di Nha Reinalda gravaram há muitos anos atrás, em 1985, já nessa altura, nessa época, havia o espirito de heavy metal no funaná. E os Ferro Gaita. Se até o nascimento dos Ferro Gaita o acordeão, que é o principal instrumento do funaná, tinha sido relegado a instrumento rural, apenas como roots, instrumento origem, mas falou-se de levar isso aos instrumentos aos instrumentos eletrónicos, de salão*NT2. Os Ferro Gaita disseram não, vamos trazer o funaná para a frente do palco, trazer a gaita para a frente do palco. Foi pois uma transformação, uma nova sonoridade para um instrumento que é quase uma orquestra, e isso deu um grande impulso que ainda hoje vive. Mas surgiu um movimento novo no acordeão, na gaita, que mostra o espírito e que abre um novo caminho no funaná, que é o Kotxi po. O Kotxi po é a música que faz furor nas periferias, tanto na diáspora como aqui. Mas, qual é a grande revolução do Kotxi Po? É que, se até ontem todos os instrumentos imitaram a gaita, o Kotxi Po pega da gaita e imita outros instrumentos. Portanto, inverteu o papel da gaita, e isso cria novos acordeonistas, novos virtuosos, novas toadas, novas cadências e abre novas perspetivas para o funaná. E é engraçado que, em pleno século XXI, o funaná por si só resolveu fazer a sua música eletrónica mas com o seu próprio instrumento de origem. Então, o Kotxi Po é um loop permanente, mas feito com o seu próprio instrumento de origem. Então, o funaná está vivo e com uma grande música, primeiro como música rural e agora como música urbana.

– No texto que escreveu sobre este seu novo disco afirma que “bebeu” de todos. O que há então nesse disco de seu, de original, de único que traz para o funaná?

– Bom, eu acho que o mais original que um criador pode ter é ter de todos e ser diferente, e ser si próprio. Todo o meu percurso, eu bebo de todos, mas é o meu estilo, a minha forma. Este disco é o meu funaná, a minha visão, a minha homenagem ao funaná e eu fico contente e surpreso pelas críticas de pessoas entendidas na matéria. Todos usam a mesma expressão: é inovador, é algo novo no panorama da música cabo-verdiana, e isto a utilizar as palavras, por exemplo, de Vasco Martins. E isso mostra que, sem abandonar as minhas raízes, as minhas origens, consigo ainda nesta época trazer um fôlego novo ao funaná. Portanto, o que é meu é de todos, e acho que é nisto que está a novidade: não repetir e conseguir, todo o tempo, ter um olhar novo sobre as coisas velhas.

– E o funaná que traz neste disco é um funaná também para dançar?

– Ah, o disco chama-se Funanight, e o propósito é exatamente esse, porque o funaná é uma música para dançar, mas também é uma música para se escutar, pois é uma música de lamento. O funaná acompanhou os primeiros homens livres, acompanhou a abolição da escravatura, surgiu nessa altura, e acompanhou a ida dos cabo-verdianos para as roças de S. Tomé. O funaná acompanhou a independência de Cabo Verde, acompanhou o nascimento da democracia pluripartidária, são grandes momentos. E hoje o funaná está a acompanhar as novas tecnologias. Então, tudo isso indica forçosamente que temos de conhecer todo este percurso para a gente fazer um trabalho de qualidade.

– Se a consagração nacional é óbvia, o reconhecimento internacional nem tanto. O mundo conhece o funaná na mesma medida em que conhece já a morna?

– Há uma parte do mundo que já conhece e o funaná tem muito prestígio fora de Cabo Verde. Eu espero contribuir para que se descubra ainda mais o funaná porque faço agora um funaná que bebe de todos os que me antecederam para um outro público, para todos e mais um, e para quem ainda não tenha ouvido. E com todos os que fazem o funaná podemos criar um grande movimento mundial, porque já existe esta vontade, é uma música muito forte, contagiante, com uma grande energia. Mas há apostas e tenho propostas de várias editoras internacionais que querem retomar e lançar este ritmo como um fenómeno no mundo todo, a par da morna. Isso é importante para a música de Cabo Verde, que tenha mais géneros conhecidos internacionalmente. A morna é conhecida lá fora sobretudo como música de escuta, de deixar-se levar mais pela via da contemplação, o funaná vem mais pela via de “ninguém pode ficar parado”.

– E quando é que vai levar esse seu funaná para fora de Cabo Verde?

– Quando sai um disco normalmente trabalhamos para o ano que vem, mas eu já fiz concertos deste disco lá fora, no Brasil, para testar como ia funcionar e foi um sucesso tremendo. Já este verão vamos estar em tournée na Europa e na América para mostrar o funaná. Mas uma grande saga de tournée só em 2018.

– Achei curioso o facto da faixa “Tema de Minis di Funaná” ter três versões. Porquê?

– Porque o disco é uma história. O disco começa com as crianças a brincar. Aquelas palmas são reais. Foi um acontecimento. Eu vi umas crianças a brincarem em Hong Kong, a brincar às palmas, fizeram um ritmo e eu cantei sobre esse ritmo. Alguém gravou e depois mandou-me e era um funaná: conta a história de como surgiu, como foi cantado durante muito tempo só com vozes, no campo, quando os escravos ou os seus descendentes não tinham instrumentos musicais mas tinham essa melodia. O disco começa assim, até que esse tema se transforma em funaná, com percussão, ferro, tudo! Então, há uma segunda versão, a primeira é só vozes, e logo na segunda, que é a versão que divulgamos para a comunicação social, já é com o funaná. E há uma terceira versão. Portanto a primeira chama-se “Onti”, a segunda é “Funaná” e a terceira chama-se “Hoji”, e é um remix, um funaná-house-afro-pop para as discotecas, que é como hoje em dia os DJs preparam o funaná para a noite, a night, porque a nova geração tem um outro beat, e eles precisam de um outro beat, que são frequências mais graves, o exagero nos agudos e loops repetitivos que levam ao transe. Por isso fizemos essa versão para a nova geração.

– Disse ainda há pouco que quis gravar e gravou com os melhores. Quem são esses melhores?

– Quando falo nos melhores não quer dizer todos os melhores estejam lá dentro. Muitos não consegui, muitos não estão, e isso é muito importante de se dizer. Mas quando falo nos melhores estou a falar de seres humanos, de gente que entende e consegue transpor para a música aquilo que queremos, porque é necessária também alguma bênção para se conseguir fazer certas coisas. Então, a sorte é que tenho amigos em todo o sítio e no Brasil os amigos chamam os amigos, e acabámos chamando os melhores músicos brasileiros para participar e isso é uma bênção para mim. Em Cuba, onde gravei com o Pablo Milanez, que chamou os músicos que habitualmente tocam com ele, o que facilita tudo, porque vêm com uma vontade, uma luz, põem o melhor que sabem no disco e a música de Cabo Verde sai a ganhar com isto. E em Cabo Verde chamei os meus colegas do conjunto Abel Djassi que estão cá: o Jorge Pimpa na bateria, o Adão Brito no baixo, o Totinho no saxofone. Nascemos juntos, crescemos juntos e 30 anos depois voltamos a gravar juntos e com a qualidade que esses músicos têm. Não são melhores que virtuosos nem melhores que ninguém, mas coube-me a sorte de ser recebido por esses músicos.

– Quem são os compositores de Funanight; autores de diferentes gerações?

– Não. Porque o disco conta a história do funaná, mas mais na base do ritmo e do espírito como era percebido o funaná nos anos 80, como era percebido no século XIX, como era percebido nos anos 90, como foi percebido pela diáspora, pela nova geração. Assim, Funanight traz quase só composições minhas, exceto um: retomo “Pomba”, do Codé di Dona, e retomo “Nandinha”, que é uma música que o Finaçon gravou nos anos 80 e que o Zeca di Nha Reinalda canta em dueto comigo no disco. Canto também uma música com o meu irmão Princezito, uma bela peça de funaná, e traduzo para o crioulo uma música do Bob Marley, por causa do espírito que existe, da parecença entre o funaná e o reggae: a languidez, o espaço para a voz, o espaço para os instrumentos, a batida do bombo com a caixa, a libertação crioula na música. O reggae libertou os crioulos das Caraíbas, para além de outras formas, o ska e outras músicas. Mas acho uma semelhança enorme, quanto à forma de tocar e abordar a música, entre o funaná e o reggae. E eu fui procurar Bob Marley e um dos temas simbólicos da sua filosofia e cantei-o pela primeira vez numa língua que é dele, mas que ele não fala, que é o crioulo. Na Jamaica existe o pidjim, que é um crioulo, mas ele nunca cantou em pidjim, cantou mais em inglês, por várias razões.

– Referiu-se às críticas que já foram feitas ao disco, todas positivas, e que classificam Funanight como um disco inovador. Ora, nós sabemos que os inovadores nem sempre, ou quase nunca, são bem recebidos pelas sociedades que lhes são contemporâneas. Tem alguma expetativa em relação à forma como os cabo-verdianos estão ou irão receber este seu novo disco?

– Esse disco tem um segredo: é muito popular. E quando o povo se apodera de algo, isto fica para sempre. E na música temos de respeitar os gostos, nunca ter a pretensão de agradar a todos. Aliás, nós trabalhamos para aqueles que gostam, sempre. Quem entende de música vai gostar de Funanight. Mas a música também é feita para quem não entende. O gosto é muito pessoal e não há nenhuma sabedoria para contrariar o gosto de cada um. Mas também quando fazemos uma coisa, nós não fazemos para ser inovadora, isso é uma consequência. Às vezes fazemos para ser assim, e não sai. Eu simplesmente gravei um disco. E gravei como eu penso e como eu sinto a música, a partir da minha postura na música. Gosto de ser rigoroso com as letras, gosto de deixar que as melodias venham das estrelas, que a inspiração venha do céu, que as coisas aconteçam, e misturar com a terra. E pode ser que resulte, e pode ser que não resulte. Neste caso, resultou. O disco está aí com toda a sua exigência estética, mas já está na rua, na periferia, nas rádios, e isso é uma grande alegria, uma grande satisfação. Entretanto, devemos ter sempre a postura que se alguma coisa é nova, é porque não é banal, se alguma coisa é nova, é nova em relação ao tempo e está à frente do que os outros esperam. E se está à frente não devemos esperar o aplauso na época. Os aplausos até virão muito tempo depois, esta é a sina de ser criativo ou de ser inovador. Não devemos esperar que, sendo inovador, se esgote no tempo em que nós o lançamos, às vezes leva tempo para ser compreendido, mas pela compreensão que Funanight já tem no momento atual já estou feliz. E o que me anima mais é que a compreensão que já tem não esgota o que lá está. Pode ser ouvido durante muitos anos. Aliás, eu diria que 50% do disco ainda não foi visto, a surpresa está aí. Na estética do disco, da capa, e isso faz com que a pessoa tenha uma obra de arte, crie uma relação com esta e a guarde durante muito tempo.